Em yoga duas idéias são apresentadas na forma de lidar com o sofrimento. Com certeza várias abordagens terapêuticas terão uma visão muito semelhante, pois é uma realidade muito fácil de ser experienciada e compreendida. Creio que estes dois conceitos que abordaremos aqui sejam estudados com a mesma seriedade em muitos caminhos de autoconhecimento, sejam eles caminhos religiosos ou meramente “terapêuticos” no sentido mais acadêmico.
As palavra originais que remetem as estas duas idéias que estudaremos aqui são “samanam” e “sodhanam” (aqui a letra “s” tem som de “x”). A primeira poderia ser traduzida por “pacificação”, trazendo o sentido de acalmar, aliviar. A segunda poderia ser traduzida por “limpeza ou purificação” e traz o sentido de reduzir ou remover a causa, curar. Ambas tem um papel muito importante e a segunda raramente é possível de ser acessada sem que a primeira tenha sido experienciada em algum grau.
Um fato a ser considerado com relação à primeira etapa (pacificação) é que, se nos limitarmos a ela exclusivamente, os sintomas acabarão retornando com o tempo. O resultado desta primeira etapa é apenas temporário. Isso não tira a importância desta etapa, apenas aponta para nós os limites dela. Desconsiderar esta etapa por ela ser considerada mais “limitada” em seus resultados seria como deixar de limpar a casa porque sabemos que depois ela irá sujar novamente.
A fase de pacificação tem como objetivo reduzir os sintomas que estarão se manifestando no corpo, na respiração e na mente. Sempre que passamos por um período de perturbação (sofrimento), junto com esta experiência podemos perceber alguns sintomas como inquietação ou prostração, pessimismo, humor instável, respiração curta, agitada ou pesada. Na maioria das vezes mais de um destes sintomas aparecerá. Nosso objetivo, então, será ajudar a trazer de volta um pouco de bem-estar, um pouco de calma e conforto. Dificilmente isso ocorrerá automaticamente num momento como esse, precisaremos de meios que nos possibilitem “encontrar, despertar” este sentimento. Neste ponto é que será mais visível, talvez, a diferença entre a primeira etapa e a segunda etapa. Os meios que adotaremos para nos acalmar, para nos trazer bem-estar, não são exatamente os mesmos que serão utilizados para nos ajudar a lidar com a causa do sofrimento. Neste momento, a maturidade e a sabedoria do professor (ou terapeuta, mestre, guia) são essenciais, pois cabe a ele refletir não só sobre qual o meio adequado para a pessoa como também qual o momento para realizar esta interferência.
Vivemos numa época onde, definitivamente, não nos faltam abordagens de pacificação. O difícil, em meio a tudo isso, é saber como e quando utilizar estas ferramentas. Não é à toa que, na visão do yoga, é importante encontrarmos uma pessoa em quem confiamos e que seja comprometida com o propósito de conhecer a si mesma(ou seja, dedicar-se a seu processo pessoal de aprendizado e reflexão) e conhecer o outro (ou seja, ouvir o outro e aplicar aquilo que já amadureceu em seu aprendizado pessoal) para nos auxiliar neste caminho.
Normalmente, em nossa trajetória, acabamos por esquecer de nossos problemas quando a primeira etapa traz algum efeito. Por exemplo, se eu começo a ter problemas para dormir isso me deixará incomodado, cansado, me forçará a fazer algo para resolver a situação. Talvez, se eu mudar um pouco a minha rotina à noite, este problema diminua. Talvez eu substitua a novela da noite ou o vídeo-game por um bom livro ou uma música agradável. Isso pode me ajudar, será uma mudança positiva, mas existe uma grande chance de esta não ser a principal causa das minhas noites sem sono. Essa medida me acalmará, me trará uma noite um pouco melhor, por conseqüência ficarei com mais disposição e mais saudável. Ou seja, é realmente uma medida importante, não deve ser desprezada. Porém, uma vez tendo recuperado um pouco da minha disposição, seria muito importante que eu continuasse a tentar entender a razão pela qual tenho estado agitado à noite, talvez eu descubra coisas importantes a respeito do meu dia, do meu trabalho eu de minha relação com os outros. Como popularmente se diz: não queremos ficar só apagando incêndios.
Há versos no Yogasutra que tratam deste assunto. Dentre eles temos os versos II.10 e II.16 que enfatizam a importância de continuarmos a buscar amadurecimento e clareza mesmo nos momentos em que nos sentimos bem. Ou seja, quando não há sofrimento, desequilíbrio ou perturbação aparente, devemos aproveitar para enraizar ainda mais nossa compreensão e nossa descoberta de nós mesmos. Partir do reconhecimento de que a felicidade depende de nosso estado interior e de que está, portanto, em nossas mãos, é um dos mais centrais alicerces deste sistema. Portanto, o movimento nesta direção é sempre louvável e é considerado como sendo a única maneira de realizarmos nosso propósito de ter uma vida plena, rica. Isso trará uma alegria mais verdadeira e permanente não só para nós mesmos, mas também para aqueles com quem nos relacionamos. Quanto mais alicerçada numa busca sincera, sustentada e profunda, menos excludente é nossa felicidade. Cabe a cada um a busca, ela é pessoal, não há como terceirizar, mas seus resultados sem dúvida se espalham e se multiplicam a partir desta solidez.
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Versos citados:
Yogasutra
II.10
"Te pratiprasavaheyah suksmah"
Tradução e comentários de TKV Desikachar (no livro "O Coração do Yoga") a respeito do verso:
Tendo apresentado os obstáculos que nublam a percepção clara, Patanjali indica qual deveria ser a atitude da pessoa que deseja reduzi-los.
"II.10 - Quando os obstáculos parecem não estar presentes, é importante permanecer vigilante."
Um estado temporário de clareza não deve ser confundido com um estado permanente. Partir do pressuposto de que tudo estará bem de agora em diante é perigoso. Agora é ainda mais importante ter cuidado. A queda da clareza para a confusão é mais perturbadora do que o estado de ausência completa de clareza.
II.16
"Heyam duhkham anagatam"
Tradução e comentários de TKV Desikachar (no livro "O Coração do Yoga") a respeito do verso:
"II.16 - Efeitos dolorosos que possivelmente ocorrerão devem ser previstos e evitados"
Devemos agir de maneira que possamos prever ou reduzir possíveis efeitos dolorosos. Patanjali dá continuidade ao assunto apontando as causas de tais efeitos dolorosos e o que deve ser feito para desenvolver dentro de nós a capacidade de previsão, prevenção, redução e aceitação dos mesmos. A prática de Yoga tem o propósito de reduzir os efeitos dolorosos em nós mesmos através do aumento de clareza, discriminação.
(Jorge Luis Knak)