22 de abril de 2011

Ariano Suassuna fala sobre a vida e a arte







SERÁ QUE UMA OBRA DE ARTE precisa mesmo de explicações do autor para enfrentar o público? Será que a visão que o autor tem de sua obra não é a mais deformada de todas? Não sei, mas acredito que é muito difícil, sem traição a ela, explicar ou ordenar os múltiplos aspectos e sentidos que tem — ou pelo menos deve ter — uma peça de teatro. O fato é que a peça é um tumulto, e as opiniões que se formam em torno dela é outro; o que, de certa forma, nos autoriza a procurar, na medida do possível, um sentido para aquilo que talvez nenhum sentido claro possua.
Com isso, não quero dizer que, ao escrever a peça, tenha conseguido fazer tudo o que pretendi ao imaginá-la. E quem o consegue? A obra que se apresenta ao público, qualquer que seja ela, é o resultado de duas derrotas: a primeira, porque o artista jamais conseguirá se equiparar à mobilidade, à vida, à riqueza, à contínua invenção da realidade; a segunda, porque depois de inventar sua obra — que não é senão uma tentativa de resposta domada, clarificada e ordenada ao que o mundo contém de feroz, de disperso e selvagem — nunca consegue ele imprimir na obra tudo o que desejou e entreviu no momento da criação.
Mal saído dessas duas derrotas, o artista entrega a obra ao público e à crítica.   E ei-lo diante de algo misterioso, terrível e perturbador, porque absolutamente imprevisível.
Às vezes, a obra é aceita pelo público e recusada pela crítica, às vezes acontece o contrário, às vezes ambos se juntam, a favor ou contra. Às vezes, depois de um julgamento que parecia definitivo, ambos se arrependem.
Na maioria dos casos, porém — e isso é, para mim, o mais incompreensível —, tanto o público como a crítica se dividem.  Uma vez, um amigo me mandou um recorte de jornal com o resultado de uma estatística dessas que certas organizações costumam fazer com inquéritos, junto ao público, na saída dos espetáculos. O resultado foi, para mim, algo surpreendente e terrificante. Eu nunca vira nenhuma delas; aceitaria de bom grado que as opiniões fossem unânimes, contra ou a favor. Mas nada disso acontecia. A peça considerada melhor pela estatística apresentava o seguinte resultado: 58 pessoas tinham dito que ela era ótima, 34 que era boa, três que era simplesmente regular e cinco que era decididamente ruim. Da peça considerada estatisticamente pior, o resultado era o seguinte: 18 pessoas tinham-na considerado má, 31 regular, 33 boa e 18 ótima.
Meu Deus, que misterioso critério de julgamento levou aquelas cinco pessoas a considerarem mau um espetáculo que outras 58 diziam ser ótimo e outras 34 diziam ser bom? E que outra imprevisível escala de apreciação levou, no segundo caso, aquelas 18 pessoas a acharem ótima uma peça que outras 18 achavam decididamente má?
É para nos desanimar, é mesmo para tirar conclusões pouco democráticas, no domínio da arte. Mas assim vai o mundo, e, ao que parece, pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser dono da luz. Assim, confessando que talvez esteja ainda mais no escuro do que os outros sobre o que faço, tento aqui a ordenação — ou uma das ordenações possíveis — para o mundo tumultuoso que inventei, não sei bem por que nem para quê.
Para isso, gostaria de esclarecer que, em certo sentido — e somente assim, porque, no fundo, isto ê uma simples história —, O santo e a porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos nós. A vida é traição, uma traição contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição dos acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois, de um ponto de vista meramente humano, a morte, por exemplo, não só não tem sentido, como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida.
É desta traição que Euricão Arábe subitamente se apercebe, é esta visão perturbadora e terrível que lhe aponta os homens como escravos — como escravos  fundamentais e não só do ponto de vista social, como um crítico entendeu apontava —, isto é, como eles próprios se veriam a instante, não fossem as preocupações, a cegueira voluntária e involuntária, as distrações e divertimentos, a covardia, tudo enfim que nos ajuda a "ir levando a vida" enquanto a morte não chega e que faz desta aventura — que se fosse sem Deus era sem sentido — um aglomerado suportável de cotidiano.
Para indicar isso, aproveitei, entre outras coisas, a circunstância de ser Euricão Engole-Cobra um estrangeiro, um "arábe", como se diz, no sertão, dos sírios, árabes e turcos enraizados, e insinuei, através disso, nossa própria condição de desterrados: "Não temos, aqui, cidade permanente" (Hebreus 13,14). Detesto os símbolos: quando Euricão fala nisso, não está simbolizando nada nem ninguém, o que prejudicaria, a meu ver, sua vida de personagem de teatro; está aludindo a uma circunstância real, pelo que me permiti essa exceção que, não prejudicando a vida e a verdade do personagem Euricão, pôde servir para dar à perda da porca o sentido do absurdo de toda a vida. Porque a perda da porca é muito grave no caso particular dele. Euricão sacrificou toda a existência a ela — ao mundo, portanto, à segurança, à vida tranquila, feliz e rotineira — , furtando a sua própria alma, como ele mesmo diz repetindo seu modelo Euclião, personagem de Plauto; e o ídolo termina por traí-lo, deixando-o solitário e abandonado diante da morte. Como afinal acontece a todos nós, quando perdemos nossa casa, nossa fábrica, nosso automóvel, nosso nariz — como aconteceu ao personagem de Gogol —, nossa amante ou nossas pernas.
Isto, quanto à porca. Ela apresenta a vida como um impasse, cuja única saída é Deus.  "Se Deus não existe, tudo é permitido", dizia Ivan Karamázov, isto é, o mundo moral ficaria inteiramente destituído de sentido.
E claro que não sou nenhum Dostoievski nem estou, nem de longe, comparando as duas obras, mas sim comentando uma semelhança de situações; pois o que Euricão descobre, de repente, esmagado, é que, se Deus não existe, tudo é absurdo. E, com esta descoberta, volta-se novamente para a única saída existente em seu impasse, a humilde crença de sua mocidade, o caminho do santo, Deus, que ele seguiria num primeiro impulso, mas do qual fora desviado aos poucos, inteiramente, pela idolatria do dinheiro, da segurança, do poder, do mundo.
Mas, se possível, olhem esta peça — assim como o conjunto de meu trabalho de escritor, dentro do qual ela, como todas as outras, deve ser entendida—antes de tudo como uma história, contada por uma pessoa, mas que mantém um contato profundo e amoroso com a vida. Considero-me um realista, mas sou realista não à maneira naturalista — que falseia a vida — mas à maneira de nossa maravilhosa literatura popular, que transfigura a vida com a imaginação para ser fiel à vida. Não tem sentido, portanto, dadas as características de meu teatro, dizer como disseram alguns críticos ilustres, que é inverossímil que um avarento ignorasse uma operação bancária e perdesse, assim, seu tesouro. Em primeiro lugar, mesmo que isso fosse impossível na vida, não o seria em meu teatro, onde um cangaceiro se deixa enganar por uma flauta e um conto-do-vigário — no caso, o Padre Cícero — e onde os anjos se vestem de judeus e os diabos de frades ou de vaqueiros; e em segundo lugar, mesmo na vida, o caso é tão possível que aconteceu; foi em Taperoá, com uma pessoa avarenta, por sinal pertencente à minha família. Na agência do Banco do Brasil, em Campina Grande, onde ela foi trocar seu dinheiro, avisada por um tio meu, juntou gente para ver aquelas notas, guardadas durante tanto tempo que ninguém as conhecia mais.
O que eu procuro atingir, portanto, é se não a verdade do mundo, a verdade de meu mundo, afinal inapreensível em sua totalidade, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, tentador e belo, com seu sol luminoso e selvagem, tão selvagem que não podemos vê-lo. Procuro me aproximar dele com as histórias, os mitos, os personagens, as cabras, as pedras, o planalto seco e frio de minha região parda, pedregosa e empoeirada. Esta visão ardente — grosseira e harmoniosa, ao mesmo tempo — é o cerne para onde se dirige meu trabalho de escritor. Admito, a exemplo do que acontece com o público e com a arte popular de minha região — o mamulengo, o romanceiro —, a mentira geral do teatro para que isso me possibilite comunicar aos outros, na medida de minhas forças, a substância deste mundo. Nunca o teatro conseguirá reproduzir a vida, que se reinventa a cada instante. Assim, sem exageros que acabem a ilusão consentida do público, é melhor não apelar para as muletas do verismo nem esconder as traves da arquitetura teatral — sejam as do autor, as do encenador ou as dos atores, pois todos nós temos as nossas; assim o público, vendo que não pretendemos enganá-lo, que não queremos competir com a vida, aceita nossos andaimes de papel, madeira e cola e pode, graças a essa generosidade, participar de nossa maravilhosa realidade transfigurada. A vida e o mundo são os motivos, que aparecem transfigurados, no teatro. Meu teatro procura se aproximar da parte do mundo que me foi dada; um mundo de sol e de poeira, como o que conheci em minha infância, com atores ambulantes ou bonecos de mamulengo representando gente comum e às vezes representando atores, com cangaceiros, santos, poderosos, assassinos, ladrões, palhaços, prostitutas, juízes, avarentos, luxuriosos,  medíocres, homens e mulheres de bem — enfim, um mundo de que não estejam ausentes — se não no teatro, que não é disso, mas na poesia ou na novela — nem mesmo os seres da vida mais humilde, as pastagens, o gado, as pedras, todo este conjunto de que o sertão está povoado.
Isto é o que venho procurando fazer. Sei que é um plano ambicioso, mas não posso estar pensando nisso, nem em se venho ou não conseguindo pô-lo em prática: terminaria ficando desesperado.
Assim, tendo dito o que quis fazer, entrego a peça aos leitores: que eles a julguem novamente, como já aconteceu com o público que a viu no palco. E, se o que disse aqui contribuiu para um maior entendimento entre nós, dou-me por satisfeito.


Ariano Suassuna - do início do livro "O Santo e a Porca" de 1964.



















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