15 de novembro de 2013
10 de novembro de 2013
A guerra contra as mulheres
Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano, e a sociedade assiste em silêncio
A história das mulheres é um longo percurso de lutas contra a humilhação e a brutalidade, escrevi há 30 anos. Não pensei que voltaria a escrever. Tudo parecia indicar que a sociedade brasileira saíra da Idade da Pedra com seus Brucutus arrastando as mulheres pelos cabelos e possuindo-as no melhor estilo animal.
Ilusão. A história das mulheres continua marcada pela humilhação e a brutalidade. É o que contam os dados do Fórum Nacional de Segurança Pública: 50 mil casos de estupro no Brasil no ano de 2012.
Este número aberrante não deveria cair no esquecimento como uma má notícia entre outras. Cinquenta mil americanos morreram na Guerra do Vietnam e isso mudou a América. Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano e a sociedade assiste em silêncio.
Segundo a pesquisa, o número de casos vem aumentando. Os estupros de fato aumentaram ou o que aumentou foi sua notificação? Se assim for, é provável é que esses números sejam apenas a ponta do iceberg.
Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.
Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.
Dissimulam seu alto potencial de crueldade no magma de desrespeito em que se misturam machismo, piadas grosseiras, gestos obscenos, aceitos como parte da cultura. A certeza da supremacia da força física, herdaram das cavernas. O desprezo pelas mulheres, aprendem facilmente em qualquer conversa de botequim. Ninguém nasce estuprador: torna-se.
O estupro é uma mutilação psíquica que a vítima carrega para sempre. Fecundação pelo ódio e contaminação pelo vírus do HIV são sequelas possíveis desse pesadelo. O medo ronda. Quantas mais estarão em risco? Pergunte-se a qualquer mulher se, uma vez na vida, se sentiu ameaçada pela violência sexual. Há uma guerra surda contra as mulheres. Quando as guerras de verdade se declaram, o estupro como arma se pratica às claras. Na Bósnia, a “limpeza étnica”, crime contra a humanidade, se fazia violando as mulheres.
Há décadas os movimentos de mulheres denunciam essa guerra surda. Estão aí as Delegacias da Mulher e a Lei Maria da Penha. O anacrônico Código Penal, que falava de crime contra os costumes, hoje capitula o estupro como crime hediondo. Aumentaram as penas e os agravantes. A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres criou o número 180 para acolher as denúncias e promete espalhar Casas da Mulher em todos os estados.
Dir-se-ia, no entanto, que estupradores não temem a denúncia, a lei e a Justiça. Por que será? De onde lhes vem a sensação de que o que fazem não é crime e, se descobertos fossem, ficariam impunes?
A resposta está no sentimento de poder sobre o corpo das mulheres que nossa sociedade destila como um veneno. É esse caldo de cultura, em que a violência sexual de tão banal fica invisível, que estimula e protege os agressores, realimentando a máquina de fazer monstros. Some-se a isso uma espécie de pacto de silêncio que, salvo quando os dados gritam como agora, impede que se reconheça a gravidade do problema que, na sua negação da dignidade humana, é comparável à prática da tortura.
Os governos descuidam do indispensável amparo às vítimas. Ora, se não há reparação possível, deve haver acolhimento e socorro. Em todo o país os serviços de saúde pública capazes de oferecer a possibilidade de um aborto previsto em lei são ridiculamente insuficientes para atender às consequências desse massacre.
A mesma energia com que a sociedade brasileira condena a tortura é necessária para debelar a epidemia de crueldade. Três mudanças de comportamento se impõem, imediatas: o fim da tolerância com o desrespeito às mulheres, em casa e nas ruas; a inclusão para valer da prevenção e repressão da violência sexual na agenda da segurança pública; e a expansão dos serviços de amparo às vítimas. É o mínimo que o Brasil deve às mulheres.
Rosiska Darcy de Oliveira
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