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4 de janeiro de 2016

O AMOR NO TERCEIRO MILÊNIO

SOBRE ESTAR SOZINHO

por Flávio Gikovate





Não é apenas o avanço tecnológico que marcou o início desde milênio. As relações afetivas também estão passando por profundas transformações e revolucionando o conceito de amor.

O que se busca hoje é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual exista individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma relação de dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar.

A idéia de uma pessoa ser o remédio para nossas infelicidades, que nasceu com o romantismo, está fadada a desaparecer neste início de século. O amor romântico parte da premissa de que somos uma fração e precisamos encontrar nossa outra metade para nos sentirmos completos. Muitas vezes ocorre até um processo de despersonalização que, historicamente, tem atingido mais a mulher. Ela abandona suas características para se amalgamar ao projeto masculino. A teoria da ligação entre opostos também vem dessa raiz: o outro tem de saber fazer o que eu não sei. Se sou manso, ele deve ser agressivo, e assim por diante. Uma idéia prática de sobrevivência, e pouco romântica, por sinal.

A palavra de ordem deste século é parceria. Estamos trocando o amor de necessidade pelo amor de desejo. Eu gosto e desejo a companhia, mas não preciso – o que é muito diferente.

Com o avanço tecnológico, que exige mais tempo individual, as pessoas estão perdendo o pavor de ficar sozinhas, e aprendendo a conviver melhor consigo mesmas. Elas estão começando a perceber que se sentem fração, mas são inteiras. O outro, com o qual se estabelece um elo, também se sente uma fração. Não é príncipe ou salvador de coisa alguma. É apenas um companheiro de viagem.

O homem é um animal que vai mudando o mundo, e depois tem de ir se reciclando para se adaptar ao mundo que fabricou. Estamos entrando na era da individualidade, o que não tem nada a ver com egoísmo. O egoísta não tem energia própria, ele se alimenta da energia que vem do outro, seja ela financeira ou moral. A nova forma de amor, ou mais amor, tem nova feição e significado. Visa a aproximação de dois inteiros, e não a união de duas metades. E ela só é possível para aqueles que conseguirem trabalhar sua individualidade. Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para uma boa relação afetiva.

A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso. Ao contrário, dá dignidade à pessoa. As boas relações afetivas são ótimas, são muito parecidas com o ficar sozinho, ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem. Relações de dominação e de concessões exageradas são coisas do século passado. Cada cérebro é único. Nosso modo de pensar e agir não serve de referência para avaliar ninguém. Muitas vezes, pensamos que o outro é nossa alma gêmea e, na verdade, o que fizemos foi inventá-lo ao nosso gosto.

Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal. Na solidão, o indivíduo entende que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas dentro dele mesmo, e não a partir do outro. Ao perceber isso, ele se torna menos crítico e mais compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um.


O amor de duas pessoas inteiras é bem mais saudável. Nesse tipo de ligação, há o aconchego, o prazer da companhia e o respeito pelo ser amado. Nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem de aprender a perdoar a si mesmo…


“A pior solidão é aquela que se sente quando acompanhado”

3 de fevereiro de 2012

O corpo nos contos de fadas


Existem muitos mitos e contos de fadas que descrevem a fragilidade e a natureza selvagem do corpo. Temos o  grego Hefesto, o manco que trabalhava os metais preciosos; o mexicano Hartar, que tinha dois corpos; a Vênus nascida do mar ; o pequeno alfaiate, que era feio  mas que podia gerar vida nova; as mulheres da Montanha dos Gigantes, que são cortejadas por sua força; Thumbelina, que consegue viajar de um lado para o outro com o auxílio da mágica; e muitos outros.
 
Nos contos de fadas, determinados objetos mágicos têm capacidades sensoriais e de transporte que são hábeis metáforas do corpo, como a nuvem, a folha e o tapete mágico, Às vezes, mantos, sapatos, escudos, chapéus e elmos proporcionam o poder da invisibilidade, de uma força superior, da vidência e assim por diante. São como uma parentela arquetípica. Cada um permite ao corpo físico dispor de um aprofundamento do insight, da audição, do vôo ou de algum tipo de proteção tanto para a psique quanto para a alma.

Antes da invenção de carruagens, coches e bigas, antes da domesticação de animais para tração e montaria, aparentemente a imagem que representava o corpo sagrado era a do objeto mágico. Peças do vestuário, amuletos, talismãs e outros objetos, quando participantes de algum tipo de relação, transportavam a pessoa para o outro lado do rio ou do mundo.
 
O tapete mágico é um excelente símbolo do valor sensorial e psíquico do corpo natural e selvagem. 
Os contos de fadas em que aparece o motivo do tapete mágico imitam a atitude não muito consciente para com o corpo na nossa própria cultura. O tapete mágico é a princípio considerado completamente ordinário e sem grande valor. No entanto, para aqueles que se sentam na sua densa felpa e dizem "Suba!", o tapete começa imediatamente a tremer, eleva-se do solo, paira um pouco e de repente, zum! , sai voando, transportando o passageiro para um lugar, um centro, um ponto de vista, um conhecimento diferente.    
O corpo, através de seus estados de excitação, percepção e de experiências sensoriais — como, por exemplo, ao ouvir música ou a voz da pessoa amada, ou ao sentir um certo perfume — tem a capacidade de nos transportar para outros lugares.
 
Nos contos de fadas, como nos mitos, o tapete representa um meio de locomoção, mas de um tipo determinado — do tipo que nos permite ver em profundidade o mundo assim como a vida em qualquer sentido. Nas histórias do Oriente Médio, ele é o veículo para o vôo espiritual dos xamãs. O corpo não é um
objeto inerte do qual lutamos para nos livrar. Visto da perspectiva correia, ele é um foguete, uma série de trevos atômicos, um emaranhado de cordões umbilicais neurológicos que nos ligam a outros mundos e outras experiências.
Além do tapete mágico, existem outros símbolos para o corpo. Uma história específica ilustra três deles. Essa história me foi passada por Fahtah Kelly. Ela se chama simplesmente "A história do tapete mágico". Nela, um sultão manda três irmãos procurarem "o melhor objeto da terra".Aquele dos três que trouxer o que for considerado o tesouro dos tesouros receberá todo um  reino.  Um dos irmãos procura e traz de volta uma varinha de condão de marfim, com a qual se pode examinar o que se desejar. Outro irmão traz uma maçã cujo perfume tem o poder de curar qualquer enfermidade. O terceiro irmão traz um tapete mágico que é capaz de transportar uma pessoa para qualquer lugar, bastando que ela pense nesse lugar.
O sultão pergunta o que é melhor. A capacidade para ver à distância? A capacidade para a cura e a recuperação? Ou a capacidade para o vôo espiritual?
Cada irmão por sua vez glorificou o objeto por ele encontrado. O sultão, no entanto, acaba por abanar a mão e proclamar que nenhum deles é melhor do que o outro, pois, sem um deles, os outros não têm nenhum valor. Com isso, o reino é dividido entre os três irmãos em partes iguais.
Essa história encerra imagens fortes que nos permitem vislumbrar no que consiste uma verdadeira animação do corpo. Essa história (assim como outras semelhantes) descreve o fabuloso potencial da intuição, do insight, da cura sensorial e do êxtase oculto no corpo.Costumamos pensar no corpo como esse "outro"que cumpre suas funções mais ou menos independente de nós e que, se o "tratarmos" bem, ele fará com que nos "sintamos bem". Muitas pessoas tratam seu corpo como se ele fosse um escravo, ou talvez elas até o tratem bem  mas exijam dele que satisfaça seus desejos e caprichos como se ele fosse um escravo do mesmo jeito.
Há quem diga que a alma anima o corpo. No entanto, e se resolvêssemos imaginar por um instante que é o corpo que anima a alma, que a ajuda a se adaptar à vida concreta, que analisa e traduz, que fornece o papel em branco, a tinta e a pena com os quais a alma pode escrever nas nossas vidas? Suponhamos, como nos contos de fadas em que as coisas mudam de forma, que o corpo é um Deus por si só, um mestre, um mentor, um guia autorizado. E daí? Seria prudente passar a vida inteira torturando esse mestre que tem tanto a dar e a ensinar? Desejamos passar a vida inteira permitindo que os outros depreciem nossos corpos, julguem-nos, consideremnos defeituosos? Será que temos força suficiente para renegar o pensamento geral e prestar atenção, com profundidade e sinceridade, ao nosso corpo como um ente poderoso e sagrado?
 
Está errada a imagem vigente na nossa cultura do corpo exclusivamente como escultura. O corpo não é de mármore. Não é essa a sua finalidade. A sua finalidade é a de proteger, conter, apoiar e atiçar o espírito e alma em seu interior, a de ser um repositório para as recordações, a de nos encher de sensações — ou seja, o supremo alimento da psique. É a de nos elevar e de nos impulsionar, de nos impregnar de sensações para provar que existimos, que estamos aqui, para nos dar uma ligação com a terra, para nos dar volume, peso. 
É errado pensar no corpo como um lugar que abandonamos para alçar vôo até o espírito. O corpo é o detonador dessas experiências. Sem o corpo não haveria a sensação de entrada em algo novo, de elevação, altura, leveza. Tudo isso provém do corpo. Ele é o lançador de foguetes. Na sua cápsula, a alma espia lá fora a misteriosa noite estrelada e se deslumbra.

O poder das ancas
 
O que constitui um corpo saudável no mundo instintivo? No nível mais básico — o seio, o ventre, qualquer parte onde haja pele, qualquer parte onde haja neurônios para transmitir sensações — a questão não é a do formato, do tamanho, da cor, da idade; mas, sim, se existe sensação, se funciona como deveria, se temos reações, se temos todo um leque, todo um espectro de sentimentos. Ele tem medo, está paralisado pela dor ou pelo receio? Está anestesiado por traumas antigos? Ou será que ele tem sua própria música? Está ouvindo, como Baubo, através do ventre?  Está olhando com uma das suas inúmeras formas de ver?

Passei por duas experiências decisivas quando estava com vinte e poucos anos, experiências que contrariavam tudo o que me haviam ensinado sobre o corpo até então. Quando estava num seminário de uma semana de duração para mulheres, à noite junto ao fogo e perto de fontes termais, vi uma mulher nua de cerca de 35 anos.
Seus seios estavam murchos de amamentar; seu ventre, estriado de dar à luz. Eu era muito nova e me lembro de ter sentido pena das agressões sofridas pela sua pele fina e clara. Alguém estava tocando tambores e maracas, e ela começou a dançar, com o cabelo, os seios, a pele, os membros todos se movimentando em direções diferentes.
Como era linda, como era cheia de vida. Sua graça era de partir o coração. Eu sempre havia ridicularizado a expressão "furacão nos quadris". Naquela noite, porém, vi um exemplo. Vi o poder das suas ancas. Presenciei o que me haviam ensinado a ignorar: o poder do corpo de uma mulher quando é animado de dentro para fora. Quase três décadas mais tarde, ainda posso vê-la dançando no escuro e ainda sinto o impacto da força do corpo.
 
O segundo despertar envolveu uma mulher muito mais velha. De acordo com os padrões vigentes, seus quadris eram excessivamente parecidos com pêras, seus seios eram ínfimos em comparação, e suas coxas eram totalmente cobertas por finíssimas veias arroxeadas. Uma longa cicatriz de alguma cirurgia grave circundava seu corpo, indo desde a coluna vertebral até as costelas, como um corte para descascar maçãs. Sua cintura devia ter a largura de quatro palmos.
 
Era, portanto, um mistério o motivo pelo qual os homens zumbiam à sua volta como se ela fosse um favo de mel.  Eles queriam morder suas coxas de pêra, lamber aquela cicatriz, segurar aquele peito, descansar o rosto nas teias das suas varizes.  Seu sorriso era deslumbrante; seu caminhar, extremamente belo. E quando ela olhava, seus olhos realmente absorviam o que estavam vendo. Vi novamente o que me haviam ensinado a ignorar, o poder no corpo. O poder cultural do corpo é a sua beleza, mas o poder no corpo é raro, pois a maioria das mulheres o expulsou com torturas ou com sua vergonha da própria carne.
 
Tendo em vista o exposto, a mulher selvagem pode pesquisar a numinosidade do seu próprio corpo e compreendê-lo, não como um peso morto que estamos condenadas a carregar por toda a vida, não como uma besta de carga, mimada ou não, que nos carrega por aí pela vida inteira, mas como uma série de portas, sonhos e poemas através dos quais podemos obter todo tipo de aprendizagem e conhecimento. Na psique selvagem, compreende-se o corpo como um ser por seus próprios méritos, que nos ama, que depende de nós, para quem, de vez em quando, somos a mãe e que, e vez em quando, representa a mãe para nós.

Clarissa Pinkola Estés - MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS

15 de novembro de 2011

A Raiva Como Instrumento de Justiça

Ao contrário do que o senso comum apregoa, a raiva não é um atributo somente dos delinquentes, dos párias, dos psicóticos. Pessoas absolutamente evoluídas ou elevadas espiritualmente também fazem uso desse instinto como recurso último de justiça e de defesa. Basta lembrar de Jesus furioso expulsando os vendilhões do templo. Em relatos espíritas, mais exatamente nas obras de Ramatis, ireis encontrar vasto material sobre o modo de vida de Jesus. Num desses relatos, o espírito afirma por meio de Registros Akáshicos que Ele no momento em que chicoteava e destruía as bancas de vendas montadas na entrada do templo, apesar de enérgico ele tinha lágrimas nos olhos. A raiva dele era total e pura, sem nenhum traço de maldade! Ao contrário do maldoso por gosto, por mania, por hobby, por gen que não expressa outra emoção neste momento que não seja a satisfação mal dissimulada.   

" A pessoa cruel não sente raiva, ela ama torturar o outro, sem nenhum tipo de romorso ".

(Nayre)
 
 
 




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Baseado no trabalho em esoterologia.blogspot.com.br.

1 de outubro de 2011

Pensamentos

Não é demonstração de saúde ser bem ajustado a uma sociedade profundamente doente.


(Jiddu Krishnamurt)



Quem trabalha com psicoterapia (e tem uma visão que a vida das pessoas deve ser tão ampla quanto as suas possibilidades) sabe que muitas vezes o sofrimento do paciente, além de suas questões pessoais, está entranhado a suas dificuldades de se ajustar as demandas e crenças da cultura.

Muitas vezes essa “parte” que se rebela e não se ajusta é a parte mais saudável dele, apesar de ele não saber disso!

Numa sociedade com uma cultura dominante como a que vivemos, de uma competição desenfreada e sem ética, materialista e consumista, infantilizada e unilateralmente extrovertida, onde o se dar bem é a custa dos outros e não com os outros, onde gentileza, delicadeza e ternura são vistos como fraqueza, quem se ajusta bem é que é BEM doente!

E o desajuste, apesar de gerar sofrimento e implicar em ter que se tomar consciência, remar contra a maré e trabalhar com ele, é um movimento a favor da saúde e da expansão da alma!

18 de agosto de 2011

Jung: Livro de Jó, Alquimia e Sincronicidade





Retirado do livro "C. G. Jung: Entrevistas e Encontros", de William McGuire e R.F.C. Hull (Ed. Cultrix)

Entrevista do Prof. Mircea Eliade com Jung, em 1952.


Eliade: Aos 77 anos de idade, o Professor C. G. Jung nada perdeu de sua extraordinária vitalidade, de seu surpreendente espírito juvenil. Ele acabou de publicar, um após outro, três novos livros: sobre o simbolismo de Aion (Tempo), sobre sincronicidade, e "Resposta a Jó", o qual já deu origem a reações sensacionais, especialmente entre os teólogos.

Jung: Esse livro sempre esteve em minha mente, mas aguardei 40 anos para escrevê-lo. Fiquei terrivelmente chocado quando, ainda criança, li o Livro de Jó pela primeira vez. Descobri que Javé é injusto, que é mesmo um malvado. Pois permite-se ser persuadido pelo diabo, concorda em torturar Jó por sugestão de Satã. Na onipotência de Javé não existe consideração pelo sofrimento humano. São abundantes os exemplos da injustiça de Javé em certos escritos hebraicos. Mas não é esse o ponto; o ponto que interessa é a reação do crente à injustiça. A questão é a seguinte: Existe na literatura rabínica qualquer prova da existência de reflexão crítica ou de uma reconciliação desse conflito na Deidade? Num texto tardio (Talmud babilônbico), Javé solicita a bênção do sumo sacerdote Ishmael, e Ishmael responde-lhe: "Seja a Tua vontade que a Tua misericórdia suprima a Tua ira, e que a Tua compaixão possa prevalecer sobre os Teus outros atributos..."

O Todo-Poderoso sente que um homem verdadeiramente santificado é superior a Ele.

É possível que tudo isso seja uma questão de linguagem. Pode ser que aquilo a que chamamos a "injustiça" e a "crueldade" de Javé sejam apenas fórmulas aproximadas e imperfeitas para expressar a transcendência total de Deus. Javé é "Aquele que é", de modo que está acima e além do bem e do mal. Ele é impossível de ser apreendido, compreendido, formulado; por conseguinte, é misericordioso e injusto simultaneamente. Isto é uma maneira de dizer que nenhuma definição pode circunscrever Deus, nenhum atributo esgota as suas potencialidades.

Eu falo como psicólogo e, sobretudo, estou falando do antropomorfismo de Javé e não de sua realidade teológica. Como psicólogo, digo que Javé é contraditório, e também penso que essa contradição pode ser interpretada psicologicamente. A fim de testar a fidelidade de Jó, Javé concede a Satã uma licença quase ilimitada. Ora, esse fato não está isento de conseqüências para a humanidade. Eventos muito importantes são iminentes no futuro por causa do papel que Javé se sentiu obrigado a atribuir a Satã. Diante da crueldade de Javé, Jó está silencioso. Esse silêncio é a mais bela e a mais nobre resposta que o homem pode dar a um Deus onipotente. O silêncio de Jó é já uma anunciação do Cristo. De fato, Deus fez-se homem, tornou-se Cristo, a fim de redimir a sua injustiça para com Jó.

Javé errou mas reconheceu o erro. Será Jó sabedor disso? De qualquer modo, a posteridade percebeu o conflito doloroso causado pela imoralidade de Javé. Há a história de um sábio muito piedoso e devoto que não suportava ler o Salmo 89. Jó está certamente consciente da injustiça divina e, assim, está mais consciente do que Javé. É a superioridade sutil do progresso do homem em consciência moral, em face de um Deus menos consciente. Essa é a razão para a Encarnação.

O grande problema em psicologia é a integração de opostos. Encontramo-lo em toda a parte e em todos os níveis. Em Psicologia e Alquimia tive ocasião de me interessar pela integração de Satã. Pois enquanto Satã não for integrado, não haverá cura para o mundo nem salvação para o homem. Mas Satã representa o mal - e como pode o mal ser integrado? Só existe uma possibilidade: assimilá-lo, ou seja, elevá-lo ao nível da consciência. Isso é feito mediante um processo simbólico muito complicado, o qual é mais ou menos idêntico ao processo psicológico de individuação. Em alquimia, chama-se a conjunção dos dois princípios. De fato, a alquimia assumiu e levou por diante a obra do cristianismo. Na concepção alquimista, o cristianismo salvou o homem, mas não a natureza. O sonho do alquimista era salvar o mundo em sua totalidade; a pedra filosofal foi concebida como o filius macrocosmi, o que salva o mundo, ao passo que o Cristo era o filius microcosmi, o salvador apenas do homem. A finalidade suprema do opus alquímico é a apokatastasis, a salvação cósmica.

Estudei alquimia durante 15 anos, mas nunca falei sobre isso a ninguém; não desejava influenciar os meus pacientes ou meus colegas de trabalho por sugestão. Mas, após 15 anos de pesquisa e observação, impuseram-se-me conclusões inelutáveis. As operações alquímicas eram reais, só que essa realidade não era física mas psicológica. A alquimia representa a projeção de um drama cósmico e espiritual em termos de laboratório. O opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmo. Aquilo a que o alquimista chamava "matéria" era, na realidade, o eu (inconsciente). A "alma do mundo" (anima mundi), que foi identificada com o spiritus mercurius, estava aprisionada na "matéria". Por essa razão é que o alquimista acreditava na verdade da "matéria", porquanto a "matéria" era, na realidade, a própria vida psíquica do alquimista. Mas era uma questão de libertar essa "matéria", de salvá-la - numa palavra, de descobrir a pedra filosofal, o corpus glorificationis.

Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; o opus alquímico é perigoso. Logo no começo encontramos o "dragão", o espírito ctônico, o "diabo" ou, como os alquimistas lhe chamavam, a "escuridade", o nigredo, e esse encontro produz sofrimento. A "matéria" sofre até ao desaparecimento final da escuridade; em termos psicológicos, a alma encontra-se nas vascas da melancolia e da angústia travando uma luta com a "sombra". O mistério da conjunção (coniunctio), o mistério central da alquimia, visa precisamente a síntese dos opostos, a assimilação da escuridade, a integração do diabo. Para o cristão "despertado" isso constitui uma experiência psíquica muito séria, pois trata-se de um confronto com a sua própria "sombra", com a escuridade, o nigredo, que permanece à parte e nunca pode ser completamente integrado na personalidade humana.

Ao interpretar-se o confronto do cristão com sua sombra em termos psicológicos, descobre-se o medo oculto de que o diabo seja mais forte, de que Cristo não tenha conseguido conquistá-lo completamente. Caso contrário, por que se acreditava e ainda se acredita no Anticristo? Por que se aguardava e continua se aguardando a vinda do Anticristo? Porque só depois do reino do Anticristo e só depois do segundo advento do Cristo o mal será finalmente conquistado no mundo e na alma humana. Em nível psicológico, todos esses símbolos e crenças são interdependentes; é sempre uma questão de lutar com o diabo, com Satã, e de conquistá-lo, ou seja, de assimilá-lo, integrando-o na consciência. Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até que o nigredo desapareça, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, o leukosis ou albedo. Mas nesse estado de "brancura" não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas chamam o rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal do albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de escuridade é dissolvido, em que o diabo deixa de ter uma existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, o opus magnum está concluído: a alma humana está completamente integrada.

Eu sou e continuo sendo um psicólogo. Não estou interessado em qualquer coisa que transcenda o conteúdo psicológico da experiência humana. Nem sequer pergunto a mim mesmo se tal transcendência é possível, visto que, em qualquer caso, o transpsicológico tampouco é de interesse para o psicólogo. Mas no nível psicológico tenho que ocupar-me das experiências religiosas que possuem uma estrutura e um simbolismo que pode ser interpretado. Para mim, a experiência religiosa é real, é verdadeira. Apurei que, através de tais experiências religiosas, a alma pode ser "salva", a sua integração acelerada, e estabelecido o equilíbrio espiritual. Para mim, como psicólogo, o estado de graça existe: é a perfeita serenidade da alma, um equilíbrio criativo, a fonte de energia espiritual. Falando sempre como psicólogo, afirmo que a presença de Deus é manifesta, na experiência profunda da psique, como uma coincidentia oppositorum, e toda a história da religião, todas as teologias, dão testemunho do fato de que a coincidentia oppositorum é uma das mais comuns e mais arcaicas fórmulas para expressar a realidade de Deus. A experiência religiosa é numinosa, como Rudolf Otto a designa, e, para mim, como psicólogo, essa experiência difere de todas as outras de um modo que transcende as categorias ordinárias de espaço, tempo e causalidade. Recentemente, empenhei-me no estudo da sincronicidade (em poucas palavras, a "ruptura do tempo"), e estabeleci que se assemelha estreitamente às experiências numinosas em que espaço, tempo e causalidade são abolidas. Não aplico qualquer juízo de valor à experiência religiosa. Afirmo que um conflito interno é sempre a fonte de profundas e perigosas crises psicológicas, tão perigosas que podem destruir a integridade de um homem. Esse conflito interno manifesta-se psicologicamente nas mesmas imagens e no mesmo simbolismo testemunhados por toda e qualquer religião no mundo, e utilizados também pelos alquimistas.

Por isso me interessei pela religião, por Javé, Satã, Cristo, pela Virgem. Entendo muito bem que um crente veja algo muito diferente nessas imagens do que eu, como psicólogo, tenho o direito de ver. A fé de um crente é uma grande força espiritual, é a garantia de sua integridade psíquica. Mas eu sou médico e estou interessado em curar os meus semelhantes. A fé e somente a fé já não tem poder - infelizmente! - para curar certas pessoas. O mundo moderno está dessacralizado; por isso está em crise. O homem moderno deve redescobrir uma fonte mais profunda de sua própria vida espiritual. Para tanto, é obrigado a lutar com o diabo, a enfrentar sua própria sombra, a integrar o diabo. Não há outra escolha. É por isso que Javé, Jó, Satã, representam situações psicologicamente exemplares; eles são como paradigmas do eterno drama humano.


Eliade: Jung descobriu o inconsciente coletivo - quer dizer, tudo o que precede a história pessoal do ser humano - e aplicou-se a decifrar as suas estruturas e a sua "dialética", com vistas a facilitar a reconciliação do homem com a parte inconsciente de sua vida psíquica e a conduzi-lo no sentido da integração de sua personalidade. Ao invés de Freud, Jung toma em consideração a história: os arquétipos, essas estruturas do inconsciente coletivo, estão carregados de história. Já não é uma questão, como quer Freud, de uma "espontaneidade natural" do inconsciente de cada indivíduo, mas de um imenso reservatório de lembranças históricas, uma memória coletiva na qual é preservada, em essência, a história de toda a humanidade. Jung acredita que o homem deve fazer maior uso desse reservatório; o seu método analítico dedica-se, precisamente, a encontrar os meios adequados para usá-lo.

Jung: O inconsciente coletivo é mais perigoso do que dinamite, mas existem métodos para manipulá-lo sem maiores riscos. Depois, quando se desencadeia uma crise psicológica, estamos em melhor posição do que qualquer outro para resolvê-la. Temos sonhos e devaneios; tratemos de os observar. Poderíamos quase dizer que todo o sonho, à sua própria maneira, contém uma mensagem. Ela não só nos diz que algo está errado nas profundidades do nosso ser, mas também nos oferece uma solução para sair da crise. Pois o inconsciente coletivo que nos envia esses sonhos já possui a solução: nada se perdeu da toda a experiência imemorial da humanidade, toda a situação imaginável e toda a solução parecem ter sido previstas pelo inconsciente coletivo. Basta apenas que observemos cuidadosamente. A análise ajuda a ler corretamente essas mensagens.


Eliade: Foi observando seus próprios sonhos - que ele tentou em vão interpretar nos termos da psicanálise freudiana - que Jung foi levado a pressupor a existência do inconsciente coletivo. Isso aconteceu em 1909. Dois anos depois, começou a dar-se conta da importância de sua descoberta. Finalmente, em 1914, ainda em conseqüência de uma série de sonhos e devaneios, ele compreendeu que as manifestações do inconsciente coletivo são, em parte, independentes das leis do tempo e da causalidade. Como o Professor Jung amavelmente me permitiu que falasse desses sonhos e devaneios, os quais desempenharam um papel capital em sua carreira científica, eis um resumo deles.

Jung: Em outubro de 1913, enquanto viajava de trem de Zurique para Schaffhausen, ocorreu-me um estranho incidente. Ao atravessar um túnel, perdi a consciência de tempo e lugar, e só fui acordado uma hora depois, quando o condutor anunciou a chegada a Schaffhausen. Durante todo esse tempo fui vítima de uma alucinação, de um devaneio. Estava olhando para o mapa da Europa e vi como, país por país, começando com a França e a Alemanha, a Europa era tragada pelo mar, até ficar submersa. Pouco depois, todo o continente era um lençol de água, com exceção da Suíça; a Suíça era como uma alta montanha que as ondas não podiam alcançar. Vi-me sentado na montanha. Mas então, olhando mais atentamente à minha volta, percebi que o mar não era de água, mas de sangue. Flutuando sobre as ondas havia cadáveres, telhados de casas, madeiras calcinadas.

Três meses mais tarde, em dezembro de 1913, e novamente no trem que me levava a Schaffhausen, repetiu-se o mesmo devaneio, de novo ao entrar no túnel (Dei-me conta, subseqüentemente, de que era como uma imersão no inconsciente coletivo). Como psiquiatra, fiquei preocupado, imaginando se eu não estaria a caminho de "fazer uma esquizofrenia", como dizíamos na linguagem desses tempos. Finalmente, alguns meses mais tarde, tive o seguinte sonho: Vi-me nos mares do sul, perto de Sumatra, no verão, acompanhado de um amigo. Mas soubemos pelos jornais que uma terrível onda de frio tinha varrido a Europa, como não havia notícia de que tivesse ocorrido antes. Decidi ir até Batávia e embarcar num navio de volta à Europa. O meu amigo disse-me que pegaria um veleiro de Sumatra para Hadramaut, e daí continuaria sua viagem através da Arábia e Turquia. Cheguei à Suíça. Em meu redor só via neve e mais neve. Uma vinha enorme estava crescendo algures; tinha muitos cachos de uvas. Acerquei-me e comecei apanhando as uvas, distribuindo-as por um magote de gente que me rodeava mas que eu não podia ver.

Três vezes esse sonho se repetiu e, finalmente, fiquei deveras intranqüilo. Eu estava justamente nessa época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: "Estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso teria lugar em julho de 1914 - exatamente o período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos.


Eliade: Jung ficou satisfeito ao receber uma segunda explicação desse sonho pouco depois. Os jornais não tardaram em noticiar que um capitão da Marinha alemã, de nome von Mücke, que tinha cruzado os mares do sul num veleiro, de Sumatra para Hadramaut, se refugiara na Arábia e daí alcançara a Turquia.



Replicado da Compilação de Sidharta Campos.

17 de julho de 2011

Imagens do Inconsciente



Acima uma belíssima ilustração de autoria de Carl Jung, o grande gênio da psicologia, em seu Red Book (Livro Vermelho). Para quem não conhece, o livro foi lançado no Brasil no ano passado. Este livro é considerado uma obra-prima. Pesando mais de 4 kg, ele é ricamente ilustrado e foi escrito em letra calígrafo. Na verdade trata-se de uma cópia exatamente igual (fac-simile) ao livro vermelho original feito pelo próprio Jung.

A imagem parece retratar o mito da Criação - a explosão do Ovo Cósmico, símbolo da Totalidade. Em diversas mitologias, relata-se que foi a explosão do Ovo Cósmico (Big bang) que tornou possível a manifestação da vida no universo. A árvore na imagem, símbolo da vida em perpétua evolução e ascenção, parece ser uma representação do eixo do mundo; ela tem suas raízes na terra, mas alcança o céu, onde há uma grande circunferência - símbolo do self.

Abaixo editei um trecho de um artigo da Revista Simples sobre o Jung e as imagens do inconsciente. O link para a matéria está no final deste post.

"...Jung dizia em sua teoria que o inconsciente envia símbolos à tona para que a mente consciente possa, aos poucos, ir compreendendo e integrando todo seu conteúdo submerso. Trata-se de uma atividade natural da psique. Assim a personalidade total do indivíduo se desenvolve e amadurece: integrando os símbolos do inconsciente. Com esse aumento de compreensão, automaticamente a consciência se amplia. Para Jung, o "ego" é apenas o centro da consciência, mas quem comanda mesmo a psique é o "self (si-mesmo)" - uma unidade psíquica maior e mais importante que o ego. O self é o ponto central da psique total do indivíduo. É o self que envia os símbolos à consciência para serem interpretados e revelados. Segundo Jung, esse inconsciente se exprime por meio de símbolos, que vêm à tona em sonhos, mitos e expressões artísticas.

Tudo para ampliar nossa consciência sobre si mesmo e nos fazer amadurecer psicologicamente. A este processo Jung chamou de Individuação.

Todos os seres humanos, de qualquer povo, diz ele, compartilham os mesmos símbolos, mas em cada cultura eles têm roupagens próprias. A essas "fôrmas" comuns e universais ele deu o nome de Arquétipos."

Leia o artigo (de autoria da Liane Alves) na íntegra: clic aqui

Glossário junguiano:


EGO - É a identidade pessoal, aquilo que chamamos de "eu". É o centro ordenador do nível consciente, mas representa uma pequena parte da psique, a ponta de um iceberg

PSIQUE - Conjunto dos níveis consciente e inconsciente do ser humano. Sinônimo de mente

SI-MESMO (SELF)- Centro ordenador da inconsciência e ponto central da psique toda

INDIVIDUAÇÃO - O processo de integração dos níveis consciente e inconsciente. Quando se completa, a psique torna-se una

MANDALA - Símbolo do si-mesmo e da totalidade. Está presente em várias culturas do mundo - os vitrais em forma de rosácea das catedrais góticas são exemplos de mandala

INCONSCIENTE INDIVIDUAL - O nível mais superficial do inconsciente. É pessoal e guarda desejos reprimidos

INCONSCIENTE COLETIVO - O nível mais profundo do inconsciente, onde estão os arquétipos. É comum a toda a humanidade

ARQUÉTIPOS - Conceitos primordiais, comuns a toda a humanidade, mas que recebem roupagens diferentes em cada cultura. O arquétipo da grande mãe, por exemplo, pode ser visto na imagem de Nossa Senhora e em diversas deusas da África, Ásia ou Oceania. Manifestam-se em sonhos e mitos e nas artes.

Replicado de Despertar

11 de fevereiro de 2011

Enigmas da Culpa



De que falamos, quando falamos em culpa?



Observação do patrocinador: 

Antes de ler e comentar qualquer coisa sobre o texto, pretendo deixar claro que este blog não aprova qualquer tipo de tratamento ofensivo contra qualquer pessoa ou animal. O texto abaixo é puramente científico e retrata a realidade. Também quero lembrar ao leitor que o sacrifício de ratos em laboratórios, embora tenha ajudado imensamente a ciência a encontrar a cura de muitas doenças, é uma técnica eficaz da nossa época, e como tudo na ciência, esta técnica está sujeita a mudanças. Espero que logo possamos dizer que isto não é mais necessário. Porém, hoje, questionada sobre a minha ética como ambientalista e vegetariana por um vegano num site de relacionamento sobre a  postagem, não hesitei em responder em tom ríspido: "Quando você for se tratar com seu médico pense em todas as cobaias que foram sacrificadas para que você continuasse vivo". Portanto, é muita demagogia falar que eu aqui não tenho ética com esta publicação, quando o outro lá que se assume publicamente vegano, usufrui dos bebefícios que a ciência conquistou por esses meios, me acusa de forma alusiva pelo MUNDO ainda ser do jeito que é.

Espero a compreensão e se esta não for possível, o respeito pelo menos.

Nayre Fernandes Martins.

***

      -> ->      Mas o que é, mesmo, a culpa? Podemos conceituar a culpa como uma acusação ou auto-acusação, por um crime, uma falta ou ato inadequado,  reais ou imaginários. Este conceito tem vários “ou”, o que é uma evidência de imprecisão. Mas imprecisão é uma constante neste tema tão antigo quanto conflituoso.
            É a culpa uma emoção ou um sentimento? Como veremos, a pergunta não é tão ociosa (ou preciosista) quanto parece. Para respondê-la precisamos definir nossos termos.
            O termo emoção provém do latim emotionem: ex, fora, para fora, e motio, movimento, ação. Daí surgiram termos similares nas línguas modernas européias. O uso do termo francês émotion data 1538. O inglês emotion é de 1579. O italiano emozione e o português emoção aparecem no começo do século XVII. Época muito significativa: o começo da modernidade, uma fase histórica que caracterizou-se pelas rápidas mudanças sociais, econômicas e culturais, pela afirmação do indivíduo ─ e de suas emoções. De fato, da acepção mais antiga, que era a de confusão, desordem, passou-se para uma outra: a agitação da mente ou do espírito. No século XIX a palavra passou a fazer parte do vocabulário da moderna psicologia, que então nascia.
            Variam as definições de emoção: fenômeno puramente biológico, puramente psicológico, ou uma mistura dos dois? É uma discussão que remonta a Descartes, para quem corpo e alma, ou espírito, eram entidades separadas, uma idéia contestada no mesmo século XVII por Spinoza: corpo e espírito, dizia ele, têm uma origem comum. Em relação à emoção propriamente dita, a maioria dos pesquisadores adota uma  posição intermediária, diferenciando entre emoções básicas, como o medo, na qual o fundamento biológico é evidente, e outras mais complexas, na qual o componente psicológico tem papel maior. Também variam as emoções básicas conforme o autor, mas medo, raiva e tristeza figuram na maioria das listas. Podemos definir emoção como um estado mental que, sem controle da consciência, mas por esta percebido, se origina do sistema nervoso e que desencadeia uma resposta de natureza psicológica e fisiológica. Ou, nas palavras do neurologista Antonio Damasio: reações naturais, automáticas, que visam, direta ou indiretamente, a preservar o corpo e assegurar o equilíbrio interno do organismo.
           A literatura de língua inglesa fala da definição de emoção segundo o modelo ABC, physiological arousal (mobilização fisiológica), behavioral expression (expressão comportamental, por exemplo, gestos) e conscious experience, experiência consciente da emoção. O primeiro e o segundo itens têm tradução corporal; assim, o medo se manifesta pela aceleração do coração e tensão muscular, a raiva de maneira similar, e a tristeza por um aperto na garganta.
            Onde se originam as emoções? Com os modernos estudos do cérebro, a pergunta está na ordem do dia, mas ela é mais antiga do que parece.Um pioneiro na área foi Franz Joseph Gall (1758 - 1828), neuroanatomista e fisiólogo alemão, criador da cranioscopia, depois rebatizada como frenologia (do grego phrenos, mente). Os frenólogos procuravam correlacionar traços da personalidade com as saliências cranianas. Assim, bossas frontais (aquelas que temos na testa) desenvolvidas seriam sinal de inteligência, de talendo. A isto alude até hoje o termo bossa; dizer que alguém tem bossa para o teatro é falar de uma vocação teatral.
            No século XX surgiu o conceito dos três cérebros ou cérebro triuno, estabelecido a partir dos anos cinqüenta pelo neurologista norte-americano Paul MacLean (e, desde então, modificado em função dos avanços da neurologia). Temos, diz ele, três cérebros em um, três cérebros que foram surgindo ao longo do processo evolutivo. O mais antigo é o cérebro reptiliano, que, como o nome diz, existe só nos répteis (cobras, jacarés). Compreende o tronco cerebral e porções do diencéfalo; seria responsável pelo funcionamento automático do organismo, no que diz respeito a respiração, circulação, reflexos, instintos. O mais novo é o neocórtex, ou cérebro neomamífero, que só existe nos primatas superiores; nos humanos, é responsável pelo conhecimento, pela lógica, pelo raciocínio, pela linguagem. Graças ao neocórtex podemos compreender o que está acontecendo, conectar informações de maneira racional, resolver problemas, fazer planos. O córtex e o neocórtex são divididos em partes chamadas lobos. O lobo frontal comanda as ações motoras, a fala, a imaginação, a consciência social, o pensamento simbólico, o cálculo, a memória de longo prazo. Não gera emoções, mas interpreta-as e articula a resposta psíquica para elas.
            Entre os dois cérebros estão cérebro paleomamífero, dos mamíferos inferiores, que surgiu a cerca de 70 milhões de anos. Ali localiza-se uma importante estrutura chamada amígdala (atenção: não é a da garganta...). A palavra vem do grego e quer dizer amêndoa, porque a amígdala tem a forma e o tamanho de uma amêndoa. É formada por um grupo de células nervosas localizadas profundamente no cérebro de vertebrados superiores, incluindo-se aí os humanos. A amígdala faz parte do sistema límbico (do latim limbus : borda, margem), que abrange as várias estruturas envolvidas na emoção, na motivação e na associação memória-emoção. O médico francês Paul Broca foi o primeiro a falar (em 1878) no grand lobe limbique, mas só em 1937 o americano James Papez correlacionou-o com a emoção; suas idéias foram retomadas e ampliadas por Maclaean. A emoção parece ser uma forma de alertar o cérebro para prestar atenção no que está acontecendo e reagir de acordo com as necessidades.
O sistema límbico funciona influenciando o sistema endócrino e o sistema nervoso autônomo, que controla a respiração, a circulação e outras funções. Está conectado com o córtex pré-frontal, uma área do cérebro que compatibiliza pensamento e ação com os objetivos da pessoa através de um processo de julgamento. No passado e ainda hoje, muitas doenças mentais eram tratadas pela secção cirúrgica desta área; a agitação e a agressividade cessam, mas a pessoa fica passiva e desmotivada.
            A amígdala desempenha um importante papel na gênese da emoção; por exemplo, o estímulo elétrico desta região desencadeia reações de medo. Ao contrário, macacos cuja amígdala foi retirada cirurgicamente (que maldade) parecem perder a capacidade de se atemorizar (capacidade sim; alerta-os contra riscos). Esta situação foi descrita em 1939 por Heinrich e Paul Bucy, que haviam removido os lobos temporais (onde se encontra a amígdala) de macacos. Observaram que os animais ficaram apáticos e que não pareciam temer inimigos naturais, como cobras. Ao contrário, mesmo depois de serem atacados por um ofídio, aproximavam-se deles de novo, como se não tivessem aprendido a lição, uma situação que recebeu o nome de "placidez" (placidity) mas que é, obviamente, muito diferente da placidez com que contemplamos uma paisagem repousante. O quadro completo envolve outros característicos e constitui a síndrome de Klüver-Bucy, que pode ocorrer muito raramente, em seres humanos que tiveram esta região cerebral afetada por doenças como encefalite.
            Em situações de emergência, portanto, é a amígdala que comanda a ação, através das emoções que criam um  estado de alerta no organismo; o córtex cerebral só pode funcionar quando cessa a tempestade emocional: só então surgem condições para a organização, análise e interpretação dos dados da realidade. Emoções podem ser provocadas em nós por uma agressão pessoal, por um cão que rosna ameaçador, por uma trovoada, enfim, por qualquer situação que mexa conosco, ou por qualquer pessoa que, por sua maneira de agir, provoque em nós uma comoção. Desempenham também papel importante na preservação do indivíduo e da espécie. Para Charles Darwin, as emoções foram se aperfeiçoando através da seleção natural, mas discute-se ainda se os animais  experimentam emoções ou se, no caso de isto acontecer, se as emoções experimentadas pelos animais são análogas às emoções dos humanos. Cresce constantemente o número de defensores desta tese (e que nela se baseiam para defender os direitos dos animais). Há fundamento para tanto: as reações orgânicas que acompanham as emoções estão presentes na escala animal. Observa Antonio Damasio que mesmo um ser unicelular como o paramécio foge quando encontra alguma anormalidade em seu ambiente: uma brusca variação de temperatura, um objeto que emite vibrações. Ascendendo na escala animal, encontramos espécies dotadas de sistema límbico, portanto teoricamente capazes de experimentar emoções. E também as conseqüência destas, como é o caso da desesperança aprendida (learned helplessness), situação descrita por Martin Seligman em 1965, baseado em experimento realizado na Universidade de Pennsylvania. Três cães recebiam choques elétricos, mas dois deles podiam interrompê-los acionando uma alavanca; o terceiro não. Provavelmente por causa do "desamparo', este cão desenvolveu sintomas análogos aos da depressão clínica em humanos. Mais: o mapeamento cerebral de animais deprimidos mostra o mesmo padrão encontrado em seres humanos com depressão.
       
          E sentimento, o que é? Podemos conceituá-lo como um estado de consciência, colorido pelo afeto, desencadeado por estímulos externos ou por memórias que nos levam a um cotejo da situação vivida por normas e ideais que previamente mantínhamos.


Diferenças entre emoção e sentimento 




. A emoção é mais "primitiva", surge mais precocemente no ser humano e é mais espontânea; o sentimento é mais tardio, modulado pela cultura, pelo modo de vida, pelo aprendizado pessoal. Aprendemos a ter sentimentos - com pais, professores, amigos, líderes espirituais, gurus, autoridades, cônjuges.
. A emoção tem expressão orgânica visível ou detectável, através de dosagens hormonais, por exemplo, ou do registro das alterações fisiológicas; na emoção, o organismo se move, e este movimento transparece, por exemplo, na expressão da face. O sentimento não é tão visível. A emoção é, portanto, mais pública, o sentimento é mais privado. A  emoção, de algum modo, nos conecta com o mundo. Já o sentimento, de algum modo, nos isola do mundo. Em seu ensaio O Inconsciente (1915), Freud salientou o fato de que a emoção é inevitavelmente percebida por nós, mas que temos sentimentos dos quais pouco ou nada sabemos. Antônio Damasio faz uma comparação artística: podemos extasiar-nos diante da Guernica, de Picasso, e esta será uma emoção estética, mas o sentimento só emergirá quando pensarmos naquilo que o quadro significa, o terror que foi a guerra na Espanha, da qual resultou o bombardeio da pequena cidade de Guernica. A especificidade humana resulta da linguagem, da memória organizada, do raciocínio complexo da capacidade de criar cultura e de criar uma História.
. O sentimento convive mais com o pensamento do que a emoção, porque emoções são necessariamente transitórias; nosso coração não poderia bater aceleradamente por dias, semanas ou anos, nossos hormônios não poderiam fluir indefinidamente. O sentimento é menos fugaz; pode às vezes durar a vida toda.

            A culpa tende para o sentimento. Não é fácil, olhando para uma pessoa, dizer se sente culpa. A culpa em si não faz a pessoa empalidecer, não acelera o seu coração, não a deixa transtornada. Mas, perguntará o leitor, se a culpa é um sentimento, se não é facilmente perceptível, como então o culpado de um crime pode ser identificado através do polígrafo, o detector de mentiras, através de registros fisiológicos? Em primeiro lugar, estamos falando de um fato objetivo que é o crime, e que a pessoa cometeu ou não - a culpa, neste caso, é muito diferente daquela que nasce de fantasias. Depois esses registros não dão conta da culpa em si, e sim da ansiedade a elas associada, ou seja, da emoção. Finalmente é preciso dizer que o método não goza de unanimidade, não são poucas  as restrições a ele feitas.
            Podemos, como vimos, partilhar emoções com os bichos. Mas, e sentimentos? Será que os animais sentem culpa? Num momento que provavelmente se deixa levar pela imaginação, Charles Darwin parece acreditar que sim: "Em determinadas épocas do ano", diz, em The Descent of Man (A descendência do homem, 1871), "as andorinhas são tomadas pelo desejo de migrar; ficam agitadas, barulhentas, reúnem-se em bandos. Quando a andorinha está cuidando dos filhotes, o instinto materno é provavelmente mais forte que o impulso de migração, mas quando este por fim prevalece, a ave alça vôo e abandona a prole. Chegando ao fim da longa jornada, e extinto o impulso, que agonia, que culpa, não sente esta mãe?"
            Interrogação que na verdade é uma afirmação, em apoio da qual, donos de cães dirão que às vezes os animais parecem demonstrar sentimento de culpa. Isto acontece quando o dono ralha com eles - por terem mastigado um sapato ou por terem urinado no tapete. Nestas circunstâncias, o animal classicamente baixa a cabeça e enfia o rabo entre as pernas (a expressão é uma tradicional metáfora para a humilhação resultante da culpa). Mas isto, segundo aqueles que entendem de bichos, é simplesmente uma resposta do animal ao tom de voz do dono. A dúvida, pois, subsiste, sobretudo por causa da incapacidade que têm os animais de se expressar sob a forma de palavras, e fundamenta a posição daqueles que sustentam que a culpa é, primordialmente e até prova em contrário, um atributo, ou um problema, dos humanos. O que é explicável, segundo Freud: abelhas e formigas conseguiram um equilíbrio entre a forma de organização existente em colméias e formigueiros e a função que ali desempenham os insetos; não há conflito, portanto não pode haver culpa.
            Diz Jerome Kagan, professor emérito de psicologia na Harvard e pioneiro da psicologia do desenvolvimento: " Os ratos de laboratório aparentemente podem sentir medo, surpresa ou desejo sexual. Mas há escassa evidência de que experimentem aquilo que chamamos de culpa." Kagan reporta-se à estrutura cerebral para explicar a razão pela qual a culpa seria exclusiva da espécie humana: "Com a evolução filogenética, o núcleo central da amígdala, estrutura crítica para a aquisição de reações de medo condicionado em animais, vai ficando cada vez menor, enquanto o núcleo basolateral e suas conexões com o o córtex pré-frontal aumentam." Ou seja: os animais podem ter emoções, que dependem da amígdala, mas as conexões da amígdala com o córtex pré-frontal, e portanto com a sede da consciência, só surgem depois, na escala animal. Continua Kagan: " Este fato, junto com a constatação de que os humanos, mas não os primatas, mostram sinais de perturbação ao violar padrões morais, significa que culpa e vergonha podem ser tão importantes quanto o medo no cotidiano humano, bem como na psicopatologia. A seleção natural favorece aqueles que têm este condicionamento embutido em seu ser. 

            Adendo* : "Na literatura psicanalítica, a vergonha é freqüentemente associada ao narcisismo (pessoas que têm traços narcísicos, estão convecidas de sua importância, acham-se "especiais", querem ser admiradas, são arrogantes) mostram-se vulneráveis a situações que causam vergonha, ao que o grupo vai pensar se ela errar. A culpa seria uma evolução do sentimento de vergonha social, pois enfatiza mais a auto-expressão individual da consciência, da necessidade de se fazer o que é bom e só, sem a necessidade de ser admirado."

O senso moral humano, que geralmente nos impede de agredir nossos semelhantes, é um produto único da evolução, mantido através da seleção natural, porque assegura a sobrevivência da espécie." Coisa que o poeta Archibald Mac Leish disse de outra maneira: "Without guilt/ What is a man? An animal, isn't he?  (Sem culpa / O que é um homem? Um animal, não é mesmo?)

Conclusão: o sentimento de culpa, coisa sem a qual a criatura não se acusa e nem é acusada, é atributo da espécie humana. Nenhuma andorinha apontará um dedo acusador (ou uma asa acusadora) para a colega que migrou deixando para trás os filhotes.

Fonte: Enigmas da Culpa - Moacyr Scliar


28 de janeiro de 2011

Alguma coisa está fora da ordem.

Do livro " Mentes Perigosas - O psicopata mora ao lado" de Ana Beatriz Barbosa Silva


Uma breve revisão na história da humanidade é capaz de revelar duas questões importantes no que tange à origem da psicopatia. A primeira delas se refere ao fato de a psicopatia sempre ter existido entre nós. Um exemplo dessa situação é destacado pelo psiquiatra americano Hervey Cleckley ao citar que o general grego Alcebíades, no século V a.C, já preenchia todos os requisitos para ser considerado um psicopata "de carteirinha".

A segunda questão aponta para a presença da psicopatia em todos os tipos de sociedades, desde as mais primitivas até as mais modernas. Esses fatos reforçam a participação de um importante substrato biológico na origem desse transtorno. No entanto, eles não invalidam, de forma alguma, a participação significativa que os fatores culturais podem ter na modulação desse quadro, ora favorecendo, ora inibindo o seu desenvolvimento.
Isso fica claro quando observamos a prevalência de psicopatas em culturas diversas. Nas sociedades ocidentais, a conduta psicopática tem-se incrementado de maneira assustadora nas últimas cinco décadas. Cotidianamente nos deparamos com jornais e revistas que estampam homicidas cruéis, assassinos em série, políticos corruptos, terroristas, pedófilos, pessoas que maltratam crianças, torturadores de mulheres, líderes religiosos inescrupulosos, estelionatários e profissionais desleais.

Tenho a convicção de que todos esses problemas têm se agravado, de modo extraordinário, devido à ação dos psicopatas e de pessoas que vêm adotando formas "psicopáticas" de convívio. Se isso ocorre é porque nossa sociedade está fundamentada em valores e práticas que, no mínimo, favorecem a maneira psicopática de ser e viver. De certa forma, estamos contribuindo para promover uma cultura na qual a psicopatia encontra um campo bastante favorável para florescer.

A cultura dos tempos modernos

A ideologia sobre a qual se alicerça a cultura dos nossos tempos é baseada em três princípios básicos: 

1) o individualismo; 2) o relativismo; 3) o instrumentalismo.

De forma compreensível e sem, contudo, aprofundar-me na esfera da filosofia, os três princípios podem ser avaliados da seguinte maneira:

1) O individualismo prega a busca do melhor tipo de vida a se usufruir. Entende-se como o melhor tipo de vida aquele que abrange o autodesenvolvimento, a autorealização e a auto-satisfação. De acordo com essa concepção, o indivíduo tem a "obrigação moral" de buscar sua felicidade em detrimento de qualquer outra obrigação com os demais.
2) Segundo o relativismo todas as escolhas são igualmente importantes, pois não há um padrão de valor objetivo que nos permita estabelecer uma hierarquia de condutas. Assim, qualquer ação que leva o indivíduo a atingir a auto-satisfação é válida e não pode ser questionada.
3) O instrumentalismo afirma que o valor de qualquer coisa fora de nós é apenas um valor instrumental, ou seja, o valor das pessoas e das coisas se resume no que elas podem fazer por nós. 

Na verdade, tudo está implícito no primeiro e principal componente da cultura moderna: o individualismo. Assim, o nosso principal objetivo é a realização e a satisfação pessoais. As obrigações que temos com as demais pessoas são meramente secundárias, prevalecendo a obrigação de desfrutarmos a vida da maneira que escolhermos. Dessa forma, as outras pessoas se transformam em simples meios para chegarmos a um fim. 

O objetivo maior da ideologia moderna era preservar a liberdade individual. No entanto,
essa ênfase sobre a liberdade criou a grande contradição de nossos tempos: como estabelecer valores morais e éticos num mundo que prioriza as escolhas individuais?

A modernidade foi responsável por uma série de mudanças na nossa forma de ver e sentir o mundo. A revolução tecnológica inundou de conforto nossas vidas. Dispomos de uma imensa variedade de coisas que facilitam nosso dia-a-dia, porém não encontramos tempo disponível para cultivarmos o nosso lado afetivo. O convívio reconfortante com a família, os amigos e o amor romântico parecem ser coisas do passado, algo lembrado com nostalgia, mas avaliado como utopia nos dias atuais. O desenvolvimento econômico nos tempos modernos fundamenta-se na crença cega de que não podemos "parar" nunca: há sempre o que aprender, conquistar, possuir, descobrir, experimentar... Nada nem ninguém é capaz de nos satisfazer plenamente, pois sempre há novas possibilidades para serem testadas na conquista da tal realização pessoal.

A realização proposta por nossa sociedade só pode ser de aspecto material, pois afetos verdadeiros não podem ser adquiridos nem substituídos na velocidade que nossos tempos preconizam. A cultura do individualismo e o desejo de conseguir bem-estar material a qualquer custo têm provocado erosão dos laços afetivos dentro da nossa sociedade. Com isso, virtudes como a honestidade, a reciprocidade e a responsabilidade com os demais caem em total descrédito. E assim, repletos de conforto e tecnologia, acabamos por nos tornar cada vez mais sozinhos e menos comprometidos com os nossos semelhantes.

Sem sombra de dúvida, o cenário social dos nossos tempos favorece o estilo de vida do psicopata. Ele reflete de forma precisa esse "novo homem", voltado somente para si mesmo, preocupado apenas com o que é seu e desvinculado da realidade vital dos que estão ao seu redor.

A expansão da cultura moderna, repleta de traços psicopáticos, modificou de forma drástica as nossas relações familiares e sociais. Estamos perdendo o senso de responsabilidade compartilhada no campo social e o de vinculação significativa nas relações interpessoais. O aumento implacável da violência e senão uma resposta lógica e previsível a toda essa situação.

A cultura psicopática está no ar

No campo da ficção, os psicopatas também têm conquistado valorosos espaços. Até bem pouco tempo atrás, nas novelas, nos romances e nos filmes, torcíamos e nos identificávamos com os personagens do bem que, em geral, eram vitimados pelas diversas circunstâncias dos enredos, mas que se mantinham éticos e triunfavam ao final. Hoje, ficamos fascinados e atraídos pelos vilões e é para eles que dirigimos nossa torcida. E quando esses "bandidos" são ricos e poderosos acabam por se transformar em sedutores de primeira grandeza. Assim, de forma quase natural, estamos abandonando os mocinhos e seus ideais morais de justiça e solidariedade. Os heróis dos novos tempos são maldosos, inescrupulosos e isentos de qualquer sentimento de culpa. Já os personagens bonzinhos despertam em nós um sentimento de pena e até certa intolerância com seus discursos utópicos e ingênuos. Os heróis do passado estão se tornando os otários dos tempos modernos.

O desrespeito, a frieza, a luxúria e a perversidade dos psicopatas estão ganhando espaço nas telinhas e nas telonas, arrebatando espectadores, críticos especializados e atores que buscam fama e reconhecimento profissional ao interpretarem personagens de "psiquismo tão complexo". Se não tomarmos muito cuidado, acabaremos adotando a conduta psicopática como um estilo de vida eficiente para se alcançar a auto-satisfação ou então como um comportamento adaptativo de sobrevivência.

É hora de pararmos e realizarmos uma profunda reflexão coletiva e individual. Precisamos definir em que proporções estamos contribuindo para a promoção de uma cultura psicopática. Temos que unir forças para efetuarmos um combate efetivo das ações psicopáticas em todas as suas manifestações. Para começar, precisamos rever a nossa tolerância em relação as pequenas transgressões do dia-a-dia, como jogar papel no  chão, buzinar em frente ao hospital, urinar em postes, cuspir nas calçadas, estacionar em locais proibidos, não recolher os dejetos dos animais de estimação e por aí vai.

E o que dizer de nossa tolerância para com a corrupção? Chegamos ao ponto absurdo de concordar com frases do tipo: "fulano rouba, mas faz." Isso representa a mais pura acomodação política que experimentamos em nossas vidas sociais. Será que acreditamos realmente que exista corrupção benigna? Claro que sabemos que isso não existe, mas tentamos criar justificativas idiotas para abrandar nossas turvas consciências. Sabemos distinguir claramente o que é certo do que é errado, no entanto preferimos relativizar essa questão para nos beneficiarmos das vantagens materiais das "pequenas" transgressões sociais.

Precisamos reestruturar, de forma urgente, os processos pelos quais nossas crianças e nossos jovens aprendem os valores e os comportamentos sociais. Para que isso ocorra,todas as instituições, tanto públicas  quanto privadas, terão que dar a sua parcela de contribuição. Somente uma educação pautada em sólidos valores altruístas poderá fazer surgir uma nova ética social que seja capaz de conciliar direitos individuais com responsabilidades interpessoais e coletivas. A aprendizagem altruísta é o único caminho possível para combatermos a cultura psicopática pautada na insensibilidade interpessoal e na ausência da solidariedade coletiva.


É fundamental destacar que não se trata de cair na velha argumentação da perda da virtude em troca do conforto e do progresso. Não é nada disso! Bem-vindas sejam as conquistas dos novos tempos, como os avanços científicos e tecnológicos, as liberdades de escolhas e de expressões. No entanto, nada disso pode se transformar em justificativa para a aceitação ou a tolerância para com uma sociedade constituída de indivíduos desvinculados dos direitos e das necessidades vitais dos que estão ao redor.

A construção de uma sociedade mais solidária é, a meu ver, o grande desafio dos nossos tempos. E para tal empreitada teremos que harmonizar o desenvolvimento tecnológico com uma consciência que não faça qualquer tipo de concessão ao estilo psicopático de ser ou de viver. A luta contra a psicopatia é a luta pelo que há de mais humano em cada um de nós. É a luta por um mundo mais ético e menos violento, repleto "de gente fina, elegante e sincera".